Decisão do TJUE surge na sequência de um pedido da justiça belga relacionado com o processo do antigo internacional francês, que enfrentou uma saída litigiosa do Lokomotiv Moscovo há cerca de uma década
O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) decidiu recentemente que certas regras relativas a transferências no futebol violam o direito comunitário, o que forçará a FIFA a rever parte da sua regulamentação sobre o mercado de trabalho no desporto.
“O TJUE está a dizer que essas regras são contra duas normativas europeias: a livre circulação de trabalhadores e a livre concorrência. A FIFA terá de mudar dois artigos do regulamento sobre o estatuto e a transferência de jogadores”, afirmou à agência Lusa Rosalía Ortega Pradillo, advogada espanhola especializada em direito desportivo.
Esta decisão do TJUE, emitida a 4 de outubro, surge na sequência de um pedido da justiça belga relacionado com o processo de Lassana Diarra, antigo internacional francês, que enfrentou uma saída litigiosa do Lokomotiv Moscovo há cerca de uma década.
“A decisão tem uma relevância estratosférica, porque estamos a falar de um assunto com mais importância do que o caso Bosman [que aboliu em 1995 as restrições sobre a transação de jogadores comunitários], tendo em conta o dinheiro envolvido, as grandes transferências e a maneira como a FIFA obriga a cumprir decisões neste tipo de assuntos”, sublinhou a presidente do Instituto Ibero-Americano de Direito Desportivo (IIDD).
O conflito de Diarra com o Lokomotiv Moscovo teve origem num desacordo com o então treinador, Leonid Kuchuk, após o jogador ter recusado uma significativa redução salarial e ter falhado alguns treinos. O clube russo alegou justa causa para rescindir unilateralmente o contrato, que era válido até 2017.
A FIFA suspendeu Diarra por 15 meses, obrigando-o a pagar uma indemnização ao Lokomotiv, inicialmente fixada em 20 milhões de euros, mas posteriormente reduzida para 10,5 milhões.
Durante o período de suspensão, o jogador suscitou o interesse do Charleroi, da Bélgica, mas o clube recuou ao perceber que, de acordo com as regras da FIFA, ficaria solidariamente responsável pela indemnização ao Lokomotiv e enfrentaria restrições na inscrição de novos jogadores, além de possíveis problemas na obtenção do certificado internacional de transferência.
“A FIFA vai ter de procurar outros mecanismos para executar decisões favoráveis a clubes ou jogadores, sem vulnerabilizar o direito da concorrência. Isto está normalizado há tantos anos, mas, quando alguém teve a ideia de levá-lo para os tribunais, acontecem decisões como aquelas que o TJUE tomou no caso da Superliga europeia”, referiu Rosalía Ortega Pradillo.
Diarra voltou aos relvados em 2015/16, ao serviço do Marselha, e contestou judicialmente vários artigos do regulamento da FIFA, criticando os valores elevados exigidos aos jogadores em casos de rescisões sem justa causa.
“Quando o clube rescinde sem justa causa, a norma geral é que o jogador receba o valor residual [dos salários]. Se, depois, ele procurar outro clube, a FIFA faz uma mitigação de danos, que não acontece em sentido inverso. Acho que está aqui o grande problema do futebol: a desigualdade na forma como se penaliza um jogador ou um clube que rompe contratos. Há uma descompensação em prejuízo da parte mais débil, que é o jogador, sendo perfeitamente consentida pela FIFA”, argumentou a advogada.
Embora a decisão do TJUE possa oferecer mais segurança aos clubes interessados em jogadores que rescindiram unilateralmente, Ortega Pradillo não acredita que o sistema de transferências será abolido. No entanto, alerta para a incerteza que poderá surgir na definição de cláusulas de rescisão.
“Imaginemos que um atleta rescinde e possui uma cláusula estratosférica, que nada tem a ver com o seu salário. Perante essa descompensação favorável aos clubes, pode produzir uma situação como a de Diarra, que não tem 10 ME para pagar [uma indemnização]”, destacou.
O caso de Diarra voltará a ser debatido nos tribunais belgas e será um dos temas centrais da Conferência Internacional de Direito Desportivo, a decorrer nos dias 18 e 19 de outubro no Estádio da Luz, em Lisboa. O evento é coorganizado pelo IIDD, pela Associação Portuguesa de Direito Desportivo (APDD) e pela Associação Internacional de Advogados do Desporto (ISLA).
“Isto é feito com o único propósito de profissionalizar um bocadinho mais o futebol. Como uma grande e importante parte das pessoas que ali trabalham são advogados, é sempre bom estarmos atualizados sobre as últimas normas e novidades”, concluiu Rosalía Ortega Pradillo, uma das oradoras do evento, considerado um dos mais importantes do mundo no campo do direito desportivo.